Gerson Luiz Buczenko


O ENSINO DE HISTÓRIA E A PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO HISTÓRICA NA EDUCAÇÃO DO CAMPO



O ensino de História tem sido alvo de inúmeras pesquisas em todas as etapas e modalidades da Educação brasileira. Na educação do Campo não é diferente, uma vez que vários pesquisadores se debruçam sobre o ensino de História dentro da realidade do campo. É importante salientar que tanto a Educação do campo, quanto o ensino de História, ou até mesmo a própria História tem sido alvo de inúmeras críticas, em razão do momento político vivido no país, condição que vem influenciando as pesquisas de uma forma geral e afetando de forma direta a Educação do Campo e o ensino de História.

Assim, em clima de resistência ao modelo hegemônico que aos poucos se impõe, propõe-se analisar o ensino de História na Educação do Campo e as possibilidades de aproximação com a perspectiva da Educação Histórica. A Educação histórica, segundo Cainelli e Schmidt [2011], surgiu na Inglaterra em meados da década de 70 no século 20 e pressupõe uma reflexão sobre a natureza do conhecimento histórico, objetivando, principalmente, ressaltar quais os sentidos que os indivíduos atribuem à História. Dessa forma, é uma área de investigação que possui um foco especial sobre as questões que remetem à cognição e metacognição histórica, e seu fundamento principal é a epistemologia da História. As pesquisas em Educação Histórica, por sua vez, possuem diversos estudos, destacando-se pesquisas sobre aprendizagem histórica, consciência histórica, ideias substantivas e ideias de segunda ordem em História, narrativas históricas entre outros.

Para Rüsen [2001] na perspectiva da Educação Histórica, o ponto inicial da ciência História, são os interesses que os homens têm de modo a poder viver e de orientar-se no fluxo do tempo, de assenhorar-se do passado, pelo conhecimento, no presente. Nesse sentido Schmidt [2011] assenta que “é no passado que reside à essencialidade da aprendizagem histórica, o passado como ponto de partida e de chegada, sempre a partir do presente”. Rüsen [2010, p. 44] acrescenta que o aprendizado histórico é parcial se houver um foco apenas no processo cognitivo, pois o mesmo também é influenciado por meio dos pontos de vista emocionais, estéticos, normativos e de interesse do aluno. 

Em relação à aprendizagem histórica ainda, é importante salientar segundo Schmidt e Cainelli [2009, p.66] um dos principais significados apontados para a aprendizagem histórica “é transformar informação em conhecimentos, apropriando-se das ideias históricas de forma cada vez mais complexa, no sentido da construção de uma literacia histórica, ou seja, de seu próprio processo de alfabetização histórica significativa”. As autoras ainda argumentam que entre os pressupostos da aprendizagem histórica, se destaca em primeiro lugar que a “História é sempre uma interpretação”, ou seja, sugere que o ensino de História deve contribuir para a constituição de uma educação histórica, capacitando os alunos a terem relações cada vez mais complexas com as ideias históricas, constituindo-os, aos poucos, como produtores de conhecimento, no sentido de recriarem relações entre a História do presente e a História do passado.

O segundo pressuposto é de que existe uma estreita relação entre História e narrativa, no sentido de defender que existe a necessidade de construção de argumentos históricos explicativos, partindo-se da análise da ação dos agentes e do contexto onde ocorre a ação. Torna-se necessário então, falar de situações específicas do passado e realizar sua interpretação, ressignificando o presente de forma individual e coletiva com o objetivo de construir uma orientação para a ação e intervenção na realidade social vivida.

Schmidt e Cainelli [2009, p. 34] salientam que:

Nesse sentido, o professor de História ajuda o aluno a adquirir as ferramentas de trabalho necessário para aprender a pensar historicamente, o saber-fazer, o saber-fazer-bem, lançando os germes do histórico. Ele é o responsável por ensinar ao aluno como captar e valorizar a diversidade das fontes e dos pontos de vista históricos, levando-o a reconstruir por adução, o percurso da narrativa histórica. Ao professor cabe ensinar ao aluno como levantar problemas, procurando transformar, em cada aula de História, temas e problemáticas em narrativas históricas.

Assim, ao analisar-se a Educação do Campo verifica-se que esta se fundamenta na preocupação com a formação humana, vinculada à emancipação e a consciência crítica, de forma coletiva, atuante e objetiva para a libertação de toda a sociedade com base na teoria da ação dialógica [Rossi, 2014, p. 63].  Segundo Caldart [2012, p. 259], a Educação do Campo nomeia um fenômeno da realidade brasileira atual, protagonizado pelos trabalhadores do campo e suas organizações, que visa incidir sobre a política de educação desde os interesses sociais das comunidades camponesas. Objetivo e sujeitos a remetem às questões do trabalho, da cultura, do conhecimento e das lutas sociais dos camponeses e ao embate, de classe, entre os projetos de campo e entre lógicas de agricultura que têm implicações no projeto de país e de sociedade e nas concepções de política pública, de educação e de formação humana. Segundo a autora ainda, é um conceito em construção, que não se descola do movimento específico da realidade que o produziu e, assim, pode configurar-se como uma categoria de análise da situação ou de práticas e políticas de educação dos trabalhadores do campo, mesmo as que se desenvolvem em outros lugares e com outras denominações [Caldart, 2012].

Ainda com Caldart [2012] é possível perceber as principais características da Educação do Campo, ou seja: luta social, constitui-se como luta social pelo acesso dos trabalhadores do campo à educação e não a qualquer educação, feita por eles mesmos e não apenas em seu nome, a Educação do Campo não é para nem apenas com, mas, sim, dos camponeses, expressão legítima de uma pedagogia do oprimido; movimento coletivo, assume a dimensão de pressão coletiva por políticas públicas mais abrangentes ou mesmo de embate entre diferentes lógicas de formulação e implementação da política educacional brasileira, faz isso sem deixar de ser luta pelo acesso à educação em cada local ou situação particular dos grupos sociais que a compõem.

Materialidade que permite a consciência coletiva do direito e a compreensão das razões sociais que o impedem; contexto de luta que combina luta pela educação com luta pela terra, pela reforma agrária, pelo direito ao trabalho, à cultura, à soberania alimentar, ao território, por isso sua relação de origem com os movimentos sociais de trabalhadores, na lógica de seus sujeitos e suas relações, uma política de Educação do Campo nunca será somente de educação em si mesma nem de educação escolar, embora se organize em torno dela, defende ainda a especificidade dessa luta e das práticas que ela gera, mas não em caráter particularista, porque as questões que coloca à sociedade a propósito das necessidades particulares de seus sujeitos não se resolvem fora do terreno das contradições sociais mais amplas que as produzem.

Contradições que, por sua vez, a análise e a atuação específicas ajudam a melhor compreender e enfrentar, isso se refere tanto ao debate da educação quanto ao contraponto de lógicas de produção da vida, de modo de vida; prática social, suas práticas reconhecem e buscam trabalhar com a riqueza social e humana da diversidade de seus sujeitos como as formas de trabalho, raízes e produções culturais, formas de luta, de resistência, de organização, de compreensão política, de modo de vida, mas seu percurso assume a tensão de se reafirmar no diverso, que é patrimônio da humanidade, que se almeja a unidade no confronto principal e na identidade de classe que objetiva superar, no campo e na cidade, as relações sociais capitalistas; relação teoria e prática, a Educação do Campo não nasceu como teoria educacional, suas primeiras questões foram práticas, seus desafios atuais continuam sendo práticos, não se resolvendo no plano apenas da disputa teórica, contudo, exatamente porque trata de práticas e de lutas contra hegemônicas, ela exige teoria e cada vez maior rigor de análise da realidade concreta, perspectiva de práxis.

Nos combates que lhe têm constituído, assim, a Educação do Campo reafirma e revigora uma concepção de educação de perspectiva emancipatória, vinculada a um projeto histórico, às lutas e à construção social e humana de longo prazo, fazendo isso ao se mover pelas necessidades formativas de uma classe portadora de futuro; a escola como objeto central, a escola tem sido objeto central das lutas e reflexões pedagógicas da Educação do Campo pelo que representa no desafio de formação dos trabalhadores, como mediação fundamental, hoje, na apropriação e produção do conhecimento que lhes é necessário, mas também pelas relações sociais perversas que sua ausência no campo reflete e sua conquista confronta, assim, a Educação do Campo, principalmente, como prática dos movimentos sociais camponeses, busca conjugar a luta pelo acesso à educação pública com a luta contra a tutela política e pedagógica do Estado e reafirma, nestes tempos sombrios, que não deve ser o Estado o educador do povo; educadores, os educadores são considerados sujeitos fundamentais da formulação pedagógica e das transformações da escola, lutas e práticas da Educação do Campo têm defendido a valorização do seu trabalho e uma formação específica nessa perspectiva.

Percebendo o movimento coletivo que envolve o social e a educação Gohn [2011] afirma que a aprendizagem não é exclusivamente escolar, estendendo-se para a produção de novos saberes em outros espaços, denominados educação não formal como, por exemplo, a participação em movimentos e ações coletivas que geram novos saberes e aprendizagens, como é o caso da Educação do Campo. Assim, há um caráter educativo nas práticas que se desenrolam no ato de participar, tanto para os membros da sociedade civil, como para a sociedade mais geral, e também para os órgãos envolvidos – quando há negociações, diálogos ou confrontos. Salienta ainda a autora que uma das premissas básicas a respeito dos movimentos sociais é que são fontes de inovação e matrizes geradoras de saberes. Entretanto, não se trata de um processo isolado, mas de caráter político-social [Gohn, 2011, p. 333].

Assim, a Educação do Campo representa a coletividade unida em torno de ideais, que se confronta com a História de dominação e desigualdade que marca de forma indelével o contexto social, econômico e educacional no país. A identidade construída no contexto das lutas empreendidas pela sociedade civil organizada, especialmente pelos movimentos sociais do campo; a organização do trabalho pedagógico, que valoriza trabalho, identidade e cultura dos povos do campo; e uma gestão democrática da escola, com intensa participação da comunidade [Souza, 2011] demarcam a identidade da Educação do Campo, reafirmando a busca pelo reconhecimento e transformação da realidade vivida pelos povos do campo.

Assim, explicitadas as principais características que envolvem a Educação do Campo, ressaltando seu caráter emancipatório e libertador, ligado diretamente à História que envolve homens e mulheres oprimidos pelo processo social estabelecido pelo modo de produção capitalista, que se renova a cada crise, estabelecendo novas formas de ser e de existir sem, no entanto, deixar de oprimir e espoliar os mais frágeis de uma sociedade que se concentra nas mãos de poucos, deflagrando um quadro de desigualdade social que, por vezes, lembra outros tempos históricos igualmente perversos.

Percebem-se, assim, as conexões com a Educação Histórica, ou melhor, é possível ver a Educação Histórica acontecer, uma vez que esta se dá a partir da realidade que o homem e a mulher do campo enfrentam em seu cotidiano, seja na marcha e enfrentamentos que buscam novas terras para assentar suas famílias, seja no assentamento, que busca iniciar uma nova vida, onde os mesmos homens e mulheres, uma vez espoliados e marginalizados pelo capital, buscam uma nova forma de ser e de existir, porém dentro de outra lógica de sociedade, em que a História de luta dos antepassados não é esquecida. Nessa nova tessitura social, a História tem uma importância vital, pois é por meio dela que se justifica todo o processo de defesa da Educação do Campo, uma vez que foi um direito negado aos povos do campo do campo no Brasil desde a sua concepção enquanto nação e mesmo antes, em relação aos povos originários e aqueles trazidos à força pela escravidão sendo-lhes, por outro lado, imposta também uma educação para o campo, nos moldes da educação urbana, meio de transporte para os padrões de cultura hegemônica que invisibilizou, com efeitos até os dias atuais, a História dos conflitos do campo no Brasil, e quando muito, trata-os de forma diminuta como se faz com o Contestado ou Canudos, por exemplo.

Assim, percebe-se que o ensino de História na perspectiva da Educação histórica está intrínseco ao processo de constituição histórica da Educação do Campo, sendo basilar para a constituição da consciência histórica em relação ao movimento social, suas lutas e resistência.

Referências
Gerson Luiz Buczenko é Licenciado em História e Pedagogia. Especialista em História Cultural. Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Tuiuti do Paraná.
É membro no Núcleo de Pesquisas em Educação do Campo, Movimentos Sociais e Práticas Pedagógicas [NUPECAMP]. Atualmente é Coordenador de Cursos no Centro Universitário Internacional Uninter. 

CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Percursos das pesquisas em educação histórica: Brasil e Portugal. In: CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Educação Histórica: teoria e pesquisa. Ijuí: Unijuí, 2011. [livro]
                      
CALDART, Roseli Salete et al. [Org.]. Dicionário da educação do campo. São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2012. [livro]

GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais na contemporaneidade. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 47, p. 333-361, maio/ago. 2011a. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v16n47/v16n47a05.pdf>. Acesso em: 1 jan. 2020. [internet]

ROSSI, Rafael. Educação do Campo: questões de luta. Curitiba: CRV, 2014.  [livro]

RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da História: os fundamentos da ciência da História. Brasília: Unb, 2001.  [livro]

_______. Aprendizado histórico. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão Rezende. Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: UFPR, 2010. [livro]

SCHMIDT, Maria Auxiliadora. O significado do passado na aprendizagem e na formação da consciência histórica de jovens alunos. In: CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Educação Histórica: teoria e pesquisa. Ijuí: Unijuí, 2011. [livro]

SCHMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene. Ensinar História. 2.ed. São Paulo: Scipione, 2009. [livro]

SOUZA, Maria Antônia de. A educação é do campo no estado do Paraná? In: ______ [Org.]. Práticas educativas do/no campo. Ponta Grossa: UEPG, 2011. [livro]

3 comentários:

  1. Olá Gerson. A pedagogia do movimento de Freire aponta a experiência, a caminhada por assim dizer, de um grupo social como forma de compreensão,
    e conhecimento de sí e da realidade. A professora Maria Auxiliadora Schmidt escreveu um texto relacionado o pensamento de Freire com o de Rüsen. Penso que a educação no campo, enseja e prescinde mais que qualquer outro modelo de uma validade do pensamento histórico e da educação por consequência, traduzida na própria luta histórica pela terra e os desafios contemporâneos. Pergunto, baseado em seu texto "Assim, a Educação do Campo representa a coletividade unida em torno de ideais, que se confronta com a História de dominação e desigualdade que marca de forma indelével o contexto social, econômico e educacional no país". Por isso a educação do campo é tão controversa, vista pelos modelos tradicionais? Possibilidades? Abcs

    Everton Carlos Crema

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  2. Olá Professor Everton. Tudo bem. Agradeço pela indagação que me faz refletir um pouco mais sobre a questão da Educação do Campo. Sim, é um tema controverso para muitos Historiadores, posto que a condição camponesa, em função do momento em que a História do Brasil tem seu início, oficialmente em 1500, na visão dos conquistadores, esquecendo-se dos que já habitavam à terra, não há espaço para "restos feudais", condição que muito bem definida por Caio Prado Junior. Porém, em condição da forma de exploração imposta, com o latifúndio, mão de obra escrava, e produção voltada para o exterior, predominante na economia brasileira de 1500 até 1888, quando do fim oficial da escravidão no Brasil, embora o modelo ainda permaneça em outro formato, gerou por sua vez, uma luta "campesina", ou seja, daqueles explorados, espoliados e expulsos da terra, como se viu no passado em Canudos, no Contestado, entre outros tantos momentos que marcam o conflito por terras no Brasil. Assim, considero o " campesinato", como uma categoria que define uma condição inegável no país que é a concentração fundiária e a exploração da mão de obra, com manutenção de um povo no campo para "servir" aos mais poderosos. Assim, quando se defende uma Educação do Campo que explore os antagonismos, que incentive uma educação crítica, que defenda a igualdade acima de tudo, isso é visto como uma ofensa pela Elite latifundiária brasileira, que tem no Congresso e nas Assembleias Legislativas seus defensores de plantão. Enquanto que o povo pobre, do campo, não tem o mesmo privilégio e necessita do movimento social para dar visibilidade à essa triste condição no país. Assim, percebo que o Pensamento Rüsen, tem uma grande aplicabilidade à Educação do Campo, pois é vital para a criança, o jovem e o adulto, a consciência histórica, que lhe mostra o passado, possibilita compreender o presente e ainda, perspectivar o futuro, mesmo que seja um futuro sombrio como vivemos na atualidade. Essa materialidade vivenciada e construída de forma cognitiva, possibilita a manutenção da luta por uma condição melhor de vida e a esperança de se ver um país, onde a igualdade saia da letra fria da lei e seja uma realidade para todos nós. Muito Obrigado.

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