Rafael Fiedoruk Quinzani e José Iran Ribeiro


ESTABELECENDO O PRIMEIRO CONTATO COM OS ALUNOS ATRAVÉS DA DINÂMICA DA LINHA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA



Introdução
Neste trabalho, faremos um relato de experiência da aplicação da brincadeira da linha como forma de iniciar a prática como professor de História nas turmas de sexto a nono ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Canova [Giruá-RS]. Nesta atividade, os alunos teriam de se aproximar da linha quando se identificassem com a afirmação, e permanecer distantes da linha caso não concordassem com esta afirmação. A partir das respostas dos alunos [aproximando ou permanecendo distantes da linha], seria possível compreender diversas questões sobre a realidade sociocultural destes, que contribuiriam para pensar a abordagem das aulas seguintes. As afirmações com quais os alunos se identificariam, ou não, foram elaboradas para tratar de temas pertinentes, como: lugar social dos alunos, tempo que estudam e trabalham em casa, práticas culturais e interesses como jogos e músicas, dentre outras questões.

Obteríamos, assim, diversas informações para construir nossa prática docente. A atividade, que ocupou cerca de um período em cada série, contribuiu para perceber que há pouco tempo dedicado ao estudo em casa. Em contraposição, a maior parte dos alunos trabalha pelo menos uma hora por dia. Ainda, dez dos quarenta participantes trabalham pelo menos quatro horas por dia. Por outro lado, a dinâmica contribuiria para percebermos o universo cultural no qual os alunos estão inseridos, constatando uma multiplicidade de gostos e interesses. Assim, é importante variar os elementos culturais que abordamos em nossa prática docente, não focalizando, somente, em um tipo de música e valorizando o interesse por jogos e demais elementos.

A atividade possui importante potencial para o Ensino de História, bem como para as discussões sobre Educação. Acontece que, ao inserir questões que lhes provocariam interesse, a atividade, além de permitir conhecer ao alunado, possibilitou o interesse nos conteúdos e, pelo que pôde ser percebido, contribuiu para o envolvimento destes no processo educacional.

Desenvolvimento
A preocupação no estabelecimento da relação professor-aluno tem perpassado a área de Ensino de História. Ranzi e Martins [2007] entrevistaram professores sobre suas formações pedagógicas e o impacto na prática de sala de aula. Em relação a como suas práticas pedagógicas se transformaram ao longo de sua carreira docente, a Professora Marlene [2002] afirma:

“Mudou tudo ou quase tudo. Antes eu ficava na minha posição e o aluno ali. Hoje não. Eu chego sempre mais próximo do aluno. Eu sou hoje uma outra professora. O relacionamento professor-aluno mudou, a minha maneira de ensinar História, antes eu cobrava fatos, datas, hoje eu relaciono com o presente, as avaliações também mudaram.” [apud Ranzi; Martins, 2007, p. 118]

Seguindo este processo, como realizar uma aula instigante e significativa, com alunos com os quais ainda não havia contato? Ao contrário de iniciarmos a primeira aula com conteúdos das ciências específicas, chegamos à consideração de que teria maior pertinência nos dedicarmos a conhecer de forma mais aprofundada as características da turma e buscar provocar um interesse pelo conteúdo das aulas. Pesquisas recentes têm percebido a prevalência de influências do meio social no desenvolvimento do conhecimento, divergindo das antigas pesquisas que enfocavam na maturação e seus estágios como questão principal na compreensão do processo de ensino-aprendizagem. No Ensino de História, pode-se destacar Cooper [2012]. Assim, não basta pré-estabelecer o conteúdo pedagógico e sua abordagem de acordo com a faixa etária, já que as possibilidades e as limitações da prática educacional estão relacionadas, em medida significativa, à vivência de mundo do aluno.

Neste sentido, um primeiro passo foi buscar conhecer, em reuniões pedagógicas e conversas com professores anteriormente ao início das aulas, o máximo de informações sobre o alunado. No início da aula, foi realizado um momento de apresentação do professor. Também falei sobre algumas questões fundamentais dos procedimentos do profissional, como o respeito aos colegas e a importância de participar nas atividades. Em seguida, faríamos uma dinâmica que contribuía nos nossos dois objetivos iniciais: engajar os alunos e conhecer suas características.

A dinâmica da linha
A atividade realizada foi inspirada no filme Escritores da Liberdade, obra lançada em 2007 e dirigido por Richard LaGravenese. O filme é baseado na história da professora americana Erin Grunwell, que, em 1994, se depara com estudantes de uma realidade social desafiadora, e, nas primeiras aulas, não encontra correspondência da turma para com sua proposta educativa. Portanto, vê a importância de estabelecer um maior contato com os alunos. A fim de estabelecer este contato, utiliza a brincadeira da linha, na qual os alunos deveriam se aproximar da linha caso se identificassem com a afirmação, ou permanecer distantes caso não concordassem com a afirmação. Por exemplo, caso solicitasse que ficassem na linha os alunos que perderam algum amigo por causa da violência das gangues, os alunos que tivessem perdido algum amigo deveriam se aproximar da linha, enquanto os que não haviam perdido amigos deveriam permanecer distantes. Assim, a professora Grunwell poderia tomar melhor conhecimento das especificidades da turma com a qual trabalhava.

Percebendo o potencial desta abordagem, decidimos adaptá-la para nosso contexto. Por fins lúdicos, decidimos realizar a atividade fora da sala de aula, na quadra escolar. Entendemos que as abordagens pedagógicas tradicionais não devem ser abandonadas, mas deve haver variação nas práticas do professor. Identificamos que resultados promissores têm sido apontados em abordagens que não se limitem ao ambiente da sala de aula [Oliveira; GastaL, 2009], embora sejam abordagens ainda pouco praticadas no ambiente escolar [Krasilchik, 2008].

Uma segunda adaptação estaria no que seria solicitado aos alunos. As afirmativas que a professora faz no filme, favoreciam a compreensão de questões voltadas à violência e realidade de gangues à qual os alunos estavam submetidos. Porém, a realidade da Escola Canova é outra: trata-se de cidade pequena, com alunos de realidades diversas. Assim, a dinâmica focaria em questões voltadas ao trabalho, à cultura e à realidade familiar dos alunos.

De início, nosso foco estava, em especial, nas questões econômicas e familiares. Porém, após discussão e consulta à bibliografia pertinente, percebemos melhor a importância da cultura no processo educativo. Ora, se o lugar social dos alunos interfere no processo educativo, devemos considerar, além da condição econômica e situação familiar, que os filmes que os alunos assistem, seus ritmos musicais favoritos, os jogos que costumam jogar, são exemplos de questões que também interferem no aprendizado. Por outro lado, trazer para a discussão elementos valorizados pelos alunos pode facilitar o interesse e a integração destes no processo educativo.

Elaboramos uma série de afirmativas às quais os alunos deveriam concordar, se aproximando da linha, ou discordar, permanecendo distantes. Foram realizadas 42 afirmativas. Destas, selecionamos 15 que consideramos pertinentes discutir.

Resultados e discussão       
Baseados na atividade, produzimos a seguinte tabela de síntese:


De início, é possível perceber que, embora o predomínio seja de moradores da região urbana de Giruá ´[29 alunos], uma parcela significativa [11 alunos] é proveniente do ambiente rural. Outro elemento da diversidade sociocultural torna-se evidente no interesse por gêneros musicais variados, como no caso da música sertaneja, do funk e da música tradicionalista gaúcha. 14 dos 40 alunos, inclusive, dominam algum instrumento musical. É interessante observar que não percebemos, durante a realização das atividades, juízos de valor ou crítica às preferências culturais entre os alunos. O que pode revelar uma cultura de respeito e aceitação a outras tradições, aspecto importante para o Ensino de História. Atividades com música, além de gerar interesse entre os alunos, podem ser interessantes para a fixação de conteúdos fundamentais ou, mesmo, para atividades pedagógicas. Um tipo de abordagem frequentemente utilizada é a criação de paródias com os alunos, utilizando-se de ritmos populares, mas inserindo conteúdos históricos nas músicas.

Também pôde-se perceber o gosto por jogos de computador em 25 dos 40 alunos. Porém, este interesse varia em cada turma. Enquanto na turma de sétimo ano todos os alunos possuem interesse em jogos eletrônicos, apenas cinco dos 15 alunos do oitavo ano possuem este interesse. Dimensionar o interesse por jogos eletrônicos pode ser informação importante no Ensino de História, que tem debatido se as novas tecnologias podem ser pertinentes, ou não, no processo educativo. Lucchesi e Maynard [2019] destacam o crescimento no número de autores do Ensino de História que defendem um hibridismo entre as antigas e novas tecnologias. Não se trata de substituir os recursos didáticos tradicionais da lousa e do giz, mas de utilizar, ao mesmo tempo, ferramentas tecnológicas. Dentre estas ferramentas, podemos identificar uma série de jogos que possuem fundo histórico, como: Medal of Honor, série de jogos de guerra baseados no cenário da Segunda Guerra Mundial, onde o jogador controla um soldado durante alguns conflitos do período; Europa Universalis, jogo de estratégia que utiliza mapas, no qual o personagem controla um reino em determinado período histórico, tendo de administrá-lo considerando relações internacionais, produção econômica específica do país, conflitos religiosos, dentre outros aspectos; e Assassin’s Creed, série de jogos de Ação-Aventura que dialogam um enredo ficcional com ambientes históricos [pode-se mencionar, inclusive, que esta série de jogos tem sido uma das fontes utilizadas para reconstruir a Catedral de Notre Dame, após o incêndio de 2019, devido à precisão com que retrata este monumento, conforme noticiado por Augusto, [2019]. Cada jogo eletrônico possui sua restrição etária específica, mas podem ser identificados diversos jogos para cada contexto histórico, cabendo ao docente pesquisar o que considera mais pertinente para seus objetivos e sua abordagem pedagógica.

Dos 40 alunos participantes, 15 já repetiram algum ano escolar pelo menos uma vez. É possível perceber, a partir das respostas, a pouca prática de estudo em casa: dos 40 alunos, somente 9 estudam pelo menos meia hora por dia, e apenas 2 dos 40 alunos estudam pelo menos uma hora por dia. Por contraste, 25 dos 40 alunos trabalham pelo menos uma hora por dia em casa, enquanto 10 trabalham pelo menos 4 horas diárias. Haveria alguma relação entre estes números?

Em sua dissertação de mestrado, Bezerra [2006] chega ao entendimento que:

“[...] o trabalho infantil causa perda de rendimento escolar aos estudantes. Crianças e adolescentes que só se dedicam aos estudos têm melhor desempenho escolar quando confrontados com os que trabalham. Mais horas de trabalho implicam uma diminuição da pontuação nos testes de proficiência aplicados para avaliar o aprendizado dos alunos. [...] Em comparação aos alunos que têm como atividade somente os estudos, aqueles que trabalham somente no ambiente domiciliar têm perda de desempenho. Aqueles que trabalham somente fora do domicílio têm seu desempenho agravado em comparação aos que não estudam e aos que trabalham no domicílio. O desempenho é ainda mais baixo para aqueles que trabalham nos dois locais.” [p.7]

Por outro lado, como perceberíamos posteriormente, uma parcela significativa dos alunos não realiza as tarefas de casa. Estas atividades são um elo importante para trazer a família ao processo educacional. Como ressalta a Constituição Federal do Brasil, no artigo 205, a Escola não é a única responsável no processo educacional:

“A educação, direito de todos e dever do Estado e da Família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” [Brasil, 1988]

Assim, é fundamental que as famílias participem deste processo. As tarefas de casa são um dos principais elos neste sentido. O que é proposto com o estudo em casa não é simplesmente o aprendizado e a fixação dos conteúdos específicos ensinados, mas o estabelecimento de uma cultura de valorização e postura ativa frente ao processo educativo.

Por fim, se a brincadeira da linha trouxe importantes informações ao docente, cabe destacar que também foi interessante aos alunos, já que quando o professor fez a afirmativa: “Fique na linha quem gostou da atividade”, todos os alunos participantes ficaram na linha, nas quatro turmas em que a atividade foi realizada. Ao gerar o engajamento dos estudantes, entendemos que houve impacto significativo para as aulas seguintes. Assim, entendemos que o tempo utilizado na dinâmica da linha seria compensado nas aulas seguintes, com a participação e o interesse no processo educativo, advindos deste momento lúdico e de conhecimento da realidade das turmas.

Conclusão
Neste trabalho, apresentamos uma possibilidade para realizar o primeiro contato com os alunos. Esta possibilidade consistiu na realização brincadeira da linha, em uma versão adaptada para as especificidades da escola em questão. Nesta brincadeira, foram feitas afirmativas, após as quais, os alunos poderiam se aproximar da linha, demonstrando que se identificavam com a afirmação, ou permanecer distantes da linha. Porém, foi importante que fossem feitas afirmações que os interessassem, mencionando questões de sua vida cotidiana, bem como de suas práticas culturais. Longe de secundários, estes aspectos nos trouxeram uma serie de reflexões.
Dentre estas reflexões, percebemos que há uma ampla diversidade no corpo discente, como do meio social, dos gostos musicais e das atividades que são realizadas fora da escola. Antes do que negar estes aspectos, entendemos que é possível trazer esta variedade para a sala de aula, atentando para abordar diversos interesses e utilizar habilidades dos alunos como uma forma de ensinar história, como no caso das músicas e jogos.

Também pode-se perceber que tem se demonstrado pouca atenção para com as práticas de ensino fora do ambiente formal do ensino. Refletir sobre o cotidiano sociocultural dos alunos foi importante para compreender a dificuldade dos alunos em realizarem as tarefas de casa. Dos 40 alunos, nove estudam pelo menos meia hora por dia, ou atingem esta média durante a semana. Destes nove, apenas dois estudam uma média de pelo menos uma hora por dia. Por outro lado, 25 alunos trabalham pelo menos uma hora por dia, sendo que 10 destes alunos trabalham pelo menos 4 horas diariamente.

É possível compreender que estes fatores possuem profundo impacto para a aprendizagem. Neste sentido, é necessário ampliar na comunidade escolar a consciência da importância do estudo, destacando que não basta a resolução do conteúdo específico das matérias, pois há uma série de atitudes e procedimentos que devem acompanhar o alunado no processo de aprendizagem. Assim, se o conteúdo for percebido como um entrave à vida dos estudantes ou um objeto sem importância, é possível que os alunos também reproduzam estas ideias nas suas atitudes enquanto estudantes. Concluímos, por fim, que uma abordagem de ensino tradicional que não considere o conhecimento prévio e o meio no qual o estudante está inserido acaba sabotando o seu propósito. Ao contrário, é necessária a atenção para as especificidades da turma, desenvolvendo atividades para conhecê-las, pois mesmo que não resultem na compreensão de conhecimentos conceituais imediatamente, trarão contribuições fundamentais para o processo educativo no longo prazo.

Referências
Rafael Fiedoruk Quinzani é licenciado em História [UFSM]e bacharelando em História [UFSM] [2020]. Atua como professor de História na Rede Municipal de Giruá. Desenvolve pesquisas ligadas à área do Ensino de História.

Orientação: José Iran Ribeiro é professor do Departamento de Metodologia do Ensino. É licenciado em História [UFSM], Mestre em História [PUCRS] e Doutor em História Social [UFRJ]
AUGUSTO, Thaís. Assassin's Creed Unity será usado na reconstrução da Catedral de Notre-Dame. Canal Tech: on-line, 16 abr. 2019. Disponível em: <https://canaltech.com.br/games/assassins-creed-unity-sera-usado-na-reconstrucao-da-catedral-de-notre-dame-137335/>. Acesso em: 07 abr. 2020. [internet]
BEZERRA, Márcio Eduardo Garcia. O trabalho infantil afeta o desempenho escolar no Brasil?. 162 f. 2006. Dissertação [Mestrado em Ciências] - Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2006.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Presidência da República, Brasília, 1988.
COOPER, Hilary. Ensino de História na Educação Infantil e Anos Iniciais; Um guia para professores. Tradução de Rita de Cássia K. Jankowski, Maria Auxiliadora M. S. Schmidt e Marcelo Fronza. Curitiba: Base Editorial, 2012. [livro]
KRASILCHIK, Myriam. Prática de Ensino de Biologia. São Paulo: Edusp. 2008. [livro]
LUCCHESI, Anita; MAYNARD, Dilton C. S. Novas Tecnologias. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Dicionário de Ensino de História. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2019. p. 179-184. [artigo]
OLIVEIRA, Roni Ivan Rocha de; GASTAL, Maria Luíza de Araújo. Educação formal fora da sala de aula: olhares sobre o ensino de ciência utilizando espaços não-formais. VII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências. Florianópolis: Enpec 2009. [livro]
RANZI, Serlei Maria Fischer; MARTINS, Cláudia R. Kawka. Profissão docente: formação e prática de professores de história no ensino médio. In: CERRI, Luis Fernando. Ensino de História e Educação: olhares em convergência. Ponta Grossa: UEPG, 2007. p. 113-137. [artigo]

3 comentários:

  1. Olá Rafael e José. Gostei muito da proposta, supera aquele oi inicial, importante, mas de pouca contribuição. O Plus que vocês deram na dinâmica é muito legal. Acho que os alunos se vêem mais valorizados e as informações que surgem ajudam a definir um perfil da turma, suas demandas, carências. Conhecer para ensinar! Pergunto essa dinâmica foi institucionalizada na UFSM?

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  2. Caríssimo Everton Crema, agradecemos pelas considerações!
    Esta dinâmica não chegou a ser institucionalizada. Eu e o professor José Iran Ribeiro conversamos individualmente, buscando nos prepararmos para as dificuldades que enfrentaríamos. Não é meu tema principal de pesquisa (Livro Didático de História), mas decidimos relatar no SIMPOHIS por ter gerado um envolvimento bem interessante dos alunos. Um grande abraço!
    Atenciosamente, Rafael Fiedoruk Quinzani

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