ENSINO DE HISTÓRIA E HISTÓRIA
DO TEMPO PRESENTE: APROXIMAÇÕES TEÓRICAS
Este texto apresenta um debate teórico sobre as relações entre o
ensino de História e tempo presente, a partir das discussões do campo da
educação história e da didática da história, bem como de algumas perspectivas
da história do tempo presente. Trata-se de uma etapa no processo de
constituição de um arcabouço teórico-conceitual em direção a uma reflexão sobre
o problema da função e usos sociais do conhecimento histórico.
Propõem-se, pois, estabelecer o referido diálogo interno ao campo
da história – ensino de História e história tempo presente – na medida em que
se entende que apenas a partir de sólidas bases teóricas, que permitam
transcender em alguma medida a especialização dos campos da história seja
possível estabelecer tal diálogo. Consequentemente, enfatiza-se na abordagem
proposta uma reflexão teórico-conceitual sobre a partir dos campos da didática
da História e da história do tempo presente e da interseção desses campos na
problemática dos usos sociais da história.
No primeiro momento deste texto, serão discutidos alguns elementos
das bases teóricas do campo da história do tempo presente, na medida em que se
reconhece que sua produção reúne importantes considerações sobre os sentidos do
passado mais recente e, portanto, pode contribuir para uma reflexão sobre a
utilidade ou função da história.
A segunda parte deste texto discutirá temas em torno do ensino de
História a partir de uma das vertentes deste campo, que pode ser associada ao
campo da “aprendizagem histórica”, enquanto movimento que propõe reflexões
sobre o ensino de História a partir dos referenciais teórico-metodológicos da
própria ciência da história. Esse campo volta-se às questões do ensino de
História a partir de alguns conceitos e noções fundamentais, dentre os quais, o
de “consciência histórica”.
Partindo dos desdobramentos internos da ciência da história, é
importante lembrar que a produção historiográfica contemporânea se caracteriza
pela diversidade de seus campos, referenciais e perspectivas. Modalidades
historiográficas mais tradicionais têm dividido espaço com novos enfoques,
ampliando muitas vezes o conhecimento histórico para além de suas fronteiras
originais. Dentre os campos que têm alcançado destaque recentemente está a
chamada história do tempo presente. Essa perspectiva também possibilita a
aproximação do conhecimento histórico de seu contexto de produção, reprodução e
circulação, ao passo que reconhece na natureza política do conhecimento
histórico e em suas implicações sociais, muitas vezes contraditórias e tensas,
os elementos que a caracterizam como campo particular.
A chamada história do tempo presente ganhou espaço na produção
historiográfica contemporânea ao ultrapassar a concepção tradicional de que
apenas o passado mais distante pode ser objeto do conhecimento histórico
[ROUSSO, 2016, p. 14]. Aproveitando a recuperação de debates sobre o
contemporâneo e, especialmente, uma importante ênfase no político,
característica de determinada historiografia francesa do pós-guerra, emergiu as
reflexões acerca do presente como objeto da historiografia [Tétart; Chauveu,
1999, p. 14].
Ademais, alguns elementos contribuem com a importância crescente
daquele campo como, por exemplo, a multiplicação de eventos considerados
traumáticos ou ainda a consolidação de uma nova dinâmica dos processos
históricos, submetidos à lógica dos meios de comunicação de massa, que tornam
“históricos” [historicamente relevantes] eventos que ainda não cessaram ou que
ainda não “passaram” [Cezar, 2012, p. 32].
Eventos traumáticos, referência tradicional da história do tempo
presente [Fico, 2012a], se associam ao próprio cotidiano na medida em que a
radicalização da experiência do contemporâneo torna o próprio dia a dia uma
experiência de choque [Benjamin, 1994, p. 109]. Se eventos catastróficos
tendiam a concentrar o interesse original da história do tempo presente, as particularidades
da própria experiência atual dão margem à reflexão sobre o passado mais
recente.
Desse modo, tais eventos traumáticos como cotidianos [agora
somados ao excesso de informações e à “hipercomunicação”] promovem uma
experiência de intensificação do presente, tornando-o questão incontornável à
reflexão histórica. Trata-se do “presente perpétuo” de nosso “regime de
historicidade” [HARTOG, 2014, p. 39] ou da profundidade de nosso “amplo
presente” [Gumbrecht, 2015, p. 131] que incorpora as referências de passado e
futuro. A experiência do presentismo se caracterizaria, a partir da leitura de
Hartog, pela experiência atual a partir da “o presente se impõem como único
horizonte, em um presente onipotente e hipertrofiado” [Pereira; Da mata, 2012,
p. 19]. Assim, se poderia concluir que o presentismo representaria a
experiência do tempo na qual “não há nada além do evento” [Pereira; Da mata,
2012, p. 19].
A predominância do presente na experiência temporal contemporânea
contribui, dessa forma, para a importância da história do tempo presente ao
passo que esse passa a ser visto não como propriamente um evento no tempo, mas
enquanto um evento que reorganiza o tempo [ROUSSO, 2016], estabelecendo novas
perspectivas e abrindo reflexões sobre o próprio estatuto da história e de sua
matéria, a ação humana no tempo.
Trata-se, assim, de se reconhecer no presente eventos que
“implicam em muitas vezes reposicionar elementos da memória, transformam as
identidades e acabam por reordenar as interpretações do passado” [Maynard,
2017, p. 336]. Nesse sentido a história do tempo presente teria como referência
eventos que possuem um caráter meta-histórico, por assim dizer, ao passo que
eles contribuíram com um reordenamento ou uma ressignificação do próprio
conhecimento histórico. As grandes catástrofes se inscreveriam, mais
naturalmente, no hall dos eventos privilegiados pela história do tempo
presente. Mas, propõe-se também que outras transformações, talvez mais sutis,
possam promover uma considerável ressignificação do conhecimento histórico, de
sua ciência e de seu ensino.
Para Carlos Fico, nessa mesma direção, o elemento que especifica a
história do tempo recente mais, que é particular aos seus temas pode ser
percebido na “mescla de política e pesquisa acadêmica” [FICO, 2012b, p. 84],
característica dos esforços de compreensão dos eventos mais recentes.
Assim, é possível acompanhar Agnès Chauveau e Philippe Tétart na
consideração de que a história do tempo presente encaminha a necessária
reflexão sobre a relação entre “o historiador, a história e a sociedade”, com o
reconhecimento de que o “historiador é cada vez mais parte integrante do
contemporâneo” [Tétart; Chauveu, 1999, p. 35]. Desse modo, a produção e a
reprodução do conhecimento histórico, em ambientes acadêmicos e escolares,
dentre outros, suas implicações na formação da consciência histórica e nas
referências temporais, podem ser reconhecidos como questões concernentes tanto
ao ensino de história quando à história do tempo presente, ao passo que
tangenciam questões relacionadas ao historiador, aos professores de história e
a sociedade contemporânea.
Nos últimos anos, as discussões dos campos da “aprendizagem
histórica” e da história do tempo presente têm, cada uma ao seu modo, se
aproximado de problemas relacionados às diferentes formas de se produzir
conhecimentos a partir da experiência histórica, aos usos do passado e à
produção de cultura histórica. Trata-se, portanto, de compreender as
particularidades das abordagens e cotejar a aproximação das mesmas.
Nesse sentido, a partir de possíveis intersecções entre os campos
do ensino de História e da história do tempo presente no tema dos usos do
passado, pode-se avançar sobre o problema concernentes à produção do saber
histórico em ambiente extra-acadêmico, escolares, e mesmo nos meios de
comunicação, as tradicionais e novas mídias, especialmente associadas à
internet, e as possibilidades e contradições da construção de versões sobre o
passado mais recente a partir desses novos registros.
Considera-se, pois, que abordar as relações entre o ensino de
História e a internet, por exemplo, por vias teórico-conceituais possibilitam
um amplo debate sobre o conhecimento histórico contemporaneamente. De tal modo,
entende-se que pode ser significativo construir um repertório conceitual para a
reflexão histórica sobre como as relações com o passado mais recente, seus usos
e a cultura histórica a partir dele produzidos ‘ressignificam’ nossa relação
com a história, especialmente no ensino de História.
As reflexões sobre a didática da História, as relações entre
conhecimento histórico e ensino de história, bem como os significados de
ensinar e aprender história, passam no Brasil, há alguns anos, por uma
importante ampliação de perspectivas. Trata-se da influência da didática da
História de vertente alemã [Rüsen, 2011] e, mais recentemente, do encontro
dessa vertente alemã da didática da História e outras reflexões sobre o ensino
de história, como é o caso do campo da chamada “educação histórica” [Schmidt,
2004, p. 32]. As discussões sobre a didática da História serão brevemente
apresentadas a seguir, de modo a destacar seus principais conceitos e indicar
sua relevância para o debate proposta nesse texto.
A compreensão da didática da História de vertente alemã passa pelo
reconhecimento da história desse campo. Segundo o teórico da história Jörn
Rüsen, o aparecimento das reflexões daquele campo é precedido por um certo
recuo das reflexões sobre o ensino de História no interior do campo da ciência
da história. Para o teórico, aquele recuo foi resultado da “crescente
institucionalização e profissionalização da história” [Rüsen, 2011, p, 25], que
contribuíram significativamente para o afastamento da reflexão histórica das
questões concernente à vida prática, dentre elas as funções formadoras do
conhecimento histórico na figura de seu ensino. Assim, originada da vida das
demandas da vida cotidiana [Rüsen, 2001, p. 35], o avanço teórico-metodológico,
característico da profissionalização do historiador e da institucionalização da
ciência da história, contribuiu para o afastamento da história das questões da
vida prática, enredando, de certa forma, o conhecimento histórico nas malhas da
academia e dos dilemas da ciência [super] especializada.
Consequentemente, para Rüsen, a didática da história passou a ser
considerada “alguma coisa completamente externa à história como ciência”
[RÜSEN, 2007, p. 89], isto é, as questões concernentes ao ensino de História
foram relegadas à periferia da reflexão histórico-científica.
Ainda seguindo Jörn Rüsen, esse cenário teórico de afastamento da
história da vida, começou a se alterar na medida em que se enfatizou em
determinadas pesquisas acadêmicas que entendem a história também como uma
ciência social [RÜSEN, 2011, p. 29] e que por isso passam a problematizar
também a função social do conhecimento histórico, tornado as questões
concernentes ao ensino e a aprendizagem de história relevantes à própria
ciência da história.
A função social [política e cultural] da história em geral e do
ensino de História em específico, a capacidade de se aprender e o como se
aprende história, passaram a ser reconhecidas como questões das quais a
reflexão da teoria da história não poderia escapar, na medida em que o
“aprendizado da história transforma a consciência história em tema da didática
da história” [RÜSEN, 2007, p. 91]. Assim, um problema relevante para a teoria
da história, a consciência histórica como estrutura elementar do pensar
historicamente, passa a ser considerado como problema fundamental do campo da
didática da História.
Esse desenvolvimento da didática da História pode assim ser
percebido no reconhecimento da “consciência histórica” como seu problema
central. Para Klaus Bergmann, outro importante nome da vertente alemã da
didática da história, essa tem como tarefas “investigar o que é apreendido no
ensino da História [...] o que pode ser apreendido [...] e o que deveria ser
apreendido [...]” [Bergmann, 1990, p. 29].
O conceito de consciência histórica se tornou, dessa forma, o
problema central dessa tendência da didática da história. Segundo Rüsen, em sua
definição já clássica, a consciência história é “a suma das operações mentais
com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu
mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua
vida prática no tempo” [Rüsen, 2001, p. 57].
O referido conceito indica assim possibilidades de se refletir
sobre os modos como o conhecimento histórico se estrutura em uma capacidade
mais elementar, a de se reconhecer como ser histórico e de transcender – por
meio da ação – das determinações temporais. Tal reflexão contribui também para
o reconhecimento da multiplicidade de fontes para a consciência histórica,
mesmo sendo hoje, o ensino de História, sua principal referência.
O campo da educação histórica passa, nesse sentido, a considerar
como tarefa inerente à ciência da história problematizar, a partir de seu
campo, questões relacionadas ao ensinar e ao aprender história, à “investigação
do significado da História no contexto social” [Bergmann, 1990, p. 31], bem
como sobre seu significado na figura do conceito de formação histórica. Para
além da especialização acadêmico-científica, se reconhece como tarefa da
ciência da história discutir seu significado social e, especialmente nesse
contexto, as origens desses significados.
Abre-se, pois, a possibilidade de se discutir, em uma associação
crítica de categorias e conceitos da teoria da história e da didática da
História questões concernentes “circulação social do conhecimento histórico”
[Saddi, 2012, p. 213] e a uma “teoria da aprendizagem histórica” e do
“letramento em história” [Cerri, 2010, p. 270] no âmbito da aula de história,
mas também para além dela. Desse modo possibilita-se a reflexão tanto sobre os
impactos sociais do ensino de História, quanto de que modo, não apenas por vias
escolares, as concepções de história são produzidas. Indica-se também
referenciais para as discussões sobre como se aprende história – e sobre o
significado de se aprender história – por vias não apenas escolares. O papel
dos meios de comunicação de massa, notadamente internet, no referido processo é
uma das questões de grande relevância, na medida em que estabelecem uma função
complementar e contraditória com o ensino escolar de História.
Assim, pois, talvez possível associar a didática da História e a
história do tempo presente a partir de um problema comum aos dois campos, a
saber, os modos através dos quais perspectivas históricas são constituídas,
tanto em sala de aula, nas aulas de história, como em outros espaços.
Entende-se, consequentemente, que aproximações entre os campos da história do
tempo presente e da educação histórica podem contribuir com uma melhor
compreensão do papel e função do conhecimento histórico no mundo contemporâneo.
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Caro Josias. Obrigado pelo texto e sua reflexão. Concordo com suas posições e com os ganhos reais que a associação entre a história do tempo presente e a educação histórica trariam pro ensino de história. Mas acho que a questão não é a consistência, importância e relevância dessas ideias, penso a partir das ideias de Apple, quando aponta para os sistemas de poder dentro das disciplinas, universidade e grupos de pesquisa. Acho que não se trata de discutir a necessidade e a qualidade do que você propõem e sim as condições políticas e morais para fazê-lo. Como defenderemos o óbvio? ABCS
ResponderExcluirEverton Carlos Crema
Olá, professor.
ResponderExcluirAgradeço pelas considerações. Estou totalmente de acordo! Penso também que trata-se de um problema não apenas para a ciência da história e seu ensino, mas para o conhecimento científico como um todo.
Obrigado!
Josias José Freire Júnior