Josias José Freire Júnior


ENSINO DE HISTÓRIA E HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: APROXIMAÇÕES TEÓRICAS



Este texto apresenta um debate teórico sobre as relações entre o ensino de História e tempo presente, a partir das discussões do campo da educação história e da didática da história, bem como de algumas perspectivas da história do tempo presente. Trata-se de uma etapa no processo de constituição de um arcabouço teórico-conceitual em direção a uma reflexão sobre o problema da função e usos sociais do conhecimento histórico.

Propõem-se, pois, estabelecer o referido diálogo interno ao campo da história – ensino de História e história tempo presente – na medida em que se entende que apenas a partir de sólidas bases teóricas, que permitam transcender em alguma medida a especialização dos campos da história seja possível estabelecer tal diálogo. Consequentemente, enfatiza-se na abordagem proposta uma reflexão teórico-conceitual sobre a partir dos campos da didática da História e da história do tempo presente e da interseção desses campos na problemática dos usos sociais da história.

No primeiro momento deste texto, serão discutidos alguns elementos das bases teóricas do campo da história do tempo presente, na medida em que se reconhece que sua produção reúne importantes considerações sobre os sentidos do passado mais recente e, portanto, pode contribuir para uma reflexão sobre a utilidade ou função da história.

A segunda parte deste texto discutirá temas em torno do ensino de História a partir de uma das vertentes deste campo, que pode ser associada ao campo da “aprendizagem histórica”, enquanto movimento que propõe reflexões sobre o ensino de História a partir dos referenciais teórico-metodológicos da própria ciência da história. Esse campo volta-se às questões do ensino de História a partir de alguns conceitos e noções fundamentais, dentre os quais, o de “consciência histórica”.

Partindo dos desdobramentos internos da ciência da história, é importante lembrar que a produção historiográfica contemporânea se caracteriza pela diversidade de seus campos, referenciais e perspectivas. Modalidades historiográficas mais tradicionais têm dividido espaço com novos enfoques, ampliando muitas vezes o conhecimento histórico para além de suas fronteiras originais. Dentre os campos que têm alcançado destaque recentemente está a chamada história do tempo presente. Essa perspectiva também possibilita a aproximação do conhecimento histórico de seu contexto de produção, reprodução e circulação, ao passo que reconhece na natureza política do conhecimento histórico e em suas implicações sociais, muitas vezes contraditórias e tensas, os elementos que a caracterizam como campo particular.

A chamada história do tempo presente ganhou espaço na produção historiográfica contemporânea ao ultrapassar a concepção tradicional de que apenas o passado mais distante pode ser objeto do conhecimento histórico [ROUSSO, 2016, p. 14]. Aproveitando a recuperação de debates sobre o contemporâneo e, especialmente, uma importante ênfase no político, característica de determinada historiografia francesa do pós-guerra, emergiu as reflexões acerca do presente como objeto da historiografia [Tétart; Chauveu, 1999, p. 14].

Ademais, alguns elementos contribuem com a importância crescente daquele campo como, por exemplo, a multiplicação de eventos considerados traumáticos ou ainda a consolidação de uma nova dinâmica dos processos históricos, submetidos à lógica dos meios de comunicação de massa, que tornam “históricos” [historicamente relevantes] eventos que ainda não cessaram ou que ainda não “passaram” [Cezar, 2012, p. 32].

Eventos traumáticos, referência tradicional da história do tempo presente [Fico, 2012a], se associam ao próprio cotidiano na medida em que a radicalização da experiência do contemporâneo torna o próprio dia a dia uma experiência de choque [Benjamin, 1994, p. 109]. Se eventos catastróficos tendiam a concentrar o interesse original da história do tempo presente, as particularidades da própria experiência atual dão margem à reflexão sobre o passado mais recente.

Desse modo, tais eventos traumáticos como cotidianos [agora somados ao excesso de informações e à “hipercomunicação”] promovem uma experiência de intensificação do presente, tornando-o questão incontornável à reflexão histórica. Trata-se do “presente perpétuo” de nosso “regime de historicidade” [HARTOG, 2014, p. 39] ou da profundidade de nosso “amplo presente” [Gumbrecht, 2015, p. 131] que incorpora as referências de passado e futuro. A experiência do presentismo se caracterizaria, a partir da leitura de Hartog, pela experiência atual a partir da “o presente se impõem como único horizonte, em um presente onipotente e hipertrofiado” [Pereira; Da mata, 2012, p. 19]. Assim, se poderia concluir que o presentismo representaria a experiência do tempo na qual “não há nada além do evento” [Pereira; Da mata, 2012, p. 19].

A predominância do presente na experiência temporal contemporânea contribui, dessa forma, para a importância da história do tempo presente ao passo que esse passa a ser visto não como propriamente um evento no tempo, mas enquanto um evento que reorganiza o tempo [ROUSSO, 2016], estabelecendo novas perspectivas e abrindo reflexões sobre o próprio estatuto da história e de sua matéria, a ação humana no tempo.

Trata-se, assim, de se reconhecer no presente eventos que “implicam em muitas vezes reposicionar elementos da memória, transformam as identidades e acabam por reordenar as interpretações do passado” [Maynard, 2017, p. 336]. Nesse sentido a história do tempo presente teria como referência eventos que possuem um caráter meta-histórico, por assim dizer, ao passo que eles contribuíram com um reordenamento ou uma ressignificação do próprio conhecimento histórico. As grandes catástrofes se inscreveriam, mais naturalmente, no hall dos eventos privilegiados pela história do tempo presente. Mas, propõe-se também que outras transformações, talvez mais sutis, possam promover uma considerável ressignificação do conhecimento histórico, de sua ciência e de seu ensino.

Para Carlos Fico, nessa mesma direção, o elemento que especifica a história do tempo recente mais, que é particular aos seus temas pode ser percebido na “mescla de política e pesquisa acadêmica” [FICO, 2012b, p. 84], característica dos esforços de compreensão dos eventos mais recentes.

Assim, é possível acompanhar Agnès Chauveau e Philippe Tétart na consideração de que a história do tempo presente encaminha a necessária reflexão sobre a relação entre “o historiador, a história e a sociedade”, com o reconhecimento de que o “historiador é cada vez mais parte integrante do contemporâneo” [Tétart; Chauveu, 1999, p. 35]. Desse modo, a produção e a reprodução do conhecimento histórico, em ambientes acadêmicos e escolares, dentre outros, suas implicações na formação da consciência histórica e nas referências temporais, podem ser reconhecidos como questões concernentes tanto ao ensino de história quando à história do tempo presente, ao passo que tangenciam questões relacionadas ao historiador, aos professores de história e a sociedade contemporânea.

Nos últimos anos, as discussões dos campos da “aprendizagem histórica” e da história do tempo presente têm, cada uma ao seu modo, se aproximado de problemas relacionados às diferentes formas de se produzir conhecimentos a partir da experiência histórica, aos usos do passado e à produção de cultura histórica. Trata-se, portanto, de compreender as particularidades das abordagens e cotejar a aproximação das mesmas.

Nesse sentido, a partir de possíveis intersecções entre os campos do ensino de História e da história do tempo presente no tema dos usos do passado, pode-se avançar sobre o problema concernentes à produção do saber histórico em ambiente extra-acadêmico, escolares, e mesmo nos meios de comunicação, as tradicionais e novas mídias, especialmente associadas à internet, e as possibilidades e contradições da construção de versões sobre o passado mais recente a partir desses novos registros.

Considera-se, pois, que abordar as relações entre o ensino de História e a internet, por exemplo, por vias teórico-conceituais possibilitam um amplo debate sobre o conhecimento histórico contemporaneamente. De tal modo, entende-se que pode ser significativo construir um repertório conceitual para a reflexão histórica sobre como as relações com o passado mais recente, seus usos e a cultura histórica a partir dele produzidos ‘ressignificam’ nossa relação com a história, especialmente no ensino de História.

As reflexões sobre a didática da História, as relações entre conhecimento histórico e ensino de história, bem como os significados de ensinar e aprender história, passam no Brasil, há alguns anos, por uma importante ampliação de perspectivas. Trata-se da influência da didática da História de vertente alemã [Rüsen, 2011] e, mais recentemente, do encontro dessa vertente alemã da didática da História e outras reflexões sobre o ensino de história, como é o caso do campo da chamada “educação histórica” [Schmidt, 2004, p. 32]. As discussões sobre a didática da História serão brevemente apresentadas a seguir, de modo a destacar seus principais conceitos e indicar sua relevância para o debate proposta nesse texto.

A compreensão da didática da História de vertente alemã passa pelo reconhecimento da história desse campo. Segundo o teórico da história Jörn Rüsen, o aparecimento das reflexões daquele campo é precedido por um certo recuo das reflexões sobre o ensino de História no interior do campo da ciência da história. Para o teórico, aquele recuo foi resultado da “crescente institucionalização e profissionalização da história” [Rüsen, 2011, p, 25], que contribuíram significativamente para o afastamento da reflexão histórica das questões concernente à vida prática, dentre elas as funções formadoras do conhecimento histórico na figura de seu ensino. Assim, originada da vida das demandas da vida cotidiana [Rüsen, 2001, p. 35], o avanço teórico-metodológico, característico da profissionalização do historiador e da institucionalização da ciência da história, contribuiu para o afastamento da história das questões da vida prática, enredando, de certa forma, o conhecimento histórico nas malhas da academia e dos dilemas da ciência [super] especializada.

Consequentemente, para Rüsen, a didática da história passou a ser considerada “alguma coisa completamente externa à história como ciência” [RÜSEN, 2007, p. 89], isto é, as questões concernentes ao ensino de História foram relegadas à periferia da reflexão histórico-científica.

Ainda seguindo Jörn Rüsen, esse cenário teórico de afastamento da história da vida, começou a se alterar na medida em que se enfatizou em determinadas pesquisas acadêmicas que entendem a história também como uma ciência social [RÜSEN, 2011, p. 29] e que por isso passam a problematizar também a função social do conhecimento histórico, tornado as questões concernentes ao ensino e a aprendizagem de história relevantes à própria ciência da história.

A função social [política e cultural] da história em geral e do ensino de História em específico, a capacidade de se aprender e o como se aprende história, passaram a ser reconhecidas como questões das quais a reflexão da teoria da história não poderia escapar, na medida em que o “aprendizado da história transforma a consciência história em tema da didática da história” [RÜSEN, 2007, p. 91]. Assim, um problema relevante para a teoria da história, a consciência histórica como estrutura elementar do pensar historicamente, passa a ser considerado como problema fundamental do campo da didática da História.
Esse desenvolvimento da didática da História pode assim ser percebido no reconhecimento da “consciência histórica” como seu problema central. Para Klaus Bergmann, outro importante nome da vertente alemã da didática da história, essa tem como tarefas “investigar o que é apreendido no ensino da História [...] o que pode ser apreendido [...] e o que deveria ser apreendido [...]” [Bergmann, 1990, p. 29].
O conceito de consciência histórica se tornou, dessa forma, o problema central dessa tendência da didática da história. Segundo Rüsen, em sua definição já clássica, a consciência história é “a suma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo” [Rüsen, 2001, p. 57].

O referido conceito indica assim possibilidades de se refletir sobre os modos como o conhecimento histórico se estrutura em uma capacidade mais elementar, a de se reconhecer como ser histórico e de transcender – por meio da ação – das determinações temporais. Tal reflexão contribui também para o reconhecimento da multiplicidade de fontes para a consciência histórica, mesmo sendo hoje, o ensino de História, sua principal referência.

O campo da educação histórica passa, nesse sentido, a considerar como tarefa inerente à ciência da história problematizar, a partir de seu campo, questões relacionadas ao ensinar e ao aprender história, à “investigação do significado da História no contexto social” [Bergmann, 1990, p. 31], bem como sobre seu significado na figura do conceito de formação histórica. Para além da especialização acadêmico-científica, se reconhece como tarefa da ciência da história discutir seu significado social e, especialmente nesse contexto, as origens desses significados.

Abre-se, pois, a possibilidade de se discutir, em uma associação crítica de categorias e conceitos da teoria da história e da didática da História questões concernentes “circulação social do conhecimento histórico” [Saddi, 2012, p. 213] e a uma “teoria da aprendizagem histórica” e do “letramento em história” [Cerri, 2010, p. 270] no âmbito da aula de história, mas também para além dela. Desse modo possibilita-se a reflexão tanto sobre os impactos sociais do ensino de História, quanto de que modo, não apenas por vias escolares, as concepções de história são produzidas. Indica-se também referenciais para as discussões sobre como se aprende história – e sobre o significado de se aprender história – por vias não apenas escolares. O papel dos meios de comunicação de massa, notadamente internet, no referido processo é uma das questões de grande relevância, na medida em que estabelecem uma função complementar e contraditória com o ensino escolar de História.

Assim, pois, talvez possível associar a didática da História e a história do tempo presente a partir de um problema comum aos dois campos, a saber, os modos através dos quais perspectivas históricas são constituídas, tanto em sala de aula, nas aulas de história, como em outros espaços. Entende-se, consequentemente, que aproximações entre os campos da história do tempo presente e da educação histórica podem contribuir com uma melhor compreensão do papel e função do conhecimento histórico no mundo contemporâneo.



Referências
Dr. Josias José Freire Júnior é professor de História do Instituto Federal de Brasília [IFB].

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas III. Trad. A. Batista. São Paulo: Brasiliense, 1994. [livro]
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2 comentários:

  1. Caro Josias. Obrigado pelo texto e sua reflexão. Concordo com suas posições e com os ganhos reais que a associação entre a história do tempo presente e a educação histórica trariam pro ensino de história. Mas acho que a questão não é a consistência, importância e relevância dessas ideias, penso a partir das ideias de Apple, quando aponta para os sistemas de poder dentro das disciplinas, universidade e grupos de pesquisa. Acho que não se trata de discutir a necessidade e a qualidade do que você propõem e sim as condições políticas e morais para fazê-lo. Como defenderemos o óbvio? ABCS


    Everton Carlos Crema

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  2. Olá, professor.

    Agradeço pelas considerações. Estou totalmente de acordo! Penso também que trata-se de um problema não apenas para a ciência da história e seu ensino, mas para o conhecimento científico como um todo.

    Obrigado!


    Josias José Freire Júnior

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